Apresentação
Resumen
No Brasil, os últimos anos têm sido marcados por retrocessos nas políticas sociais e no pacto civilizatório, sufocamento das políticas públicas, oficialização da negação da alteridade e da legitimidade da diferença, desproteção às populações vulneráveis, negacionismo da ciência como baliza de compreensão de mundo e de boas práticas, dentre vários outros aspectos que cotidianamente se desvelam.
No que concerne às políticas de Saúde Mental, campo de disputa de paradigmas, apesar dos esforços internacionais em induzir práticas territoriais intersetoriais (OMS, 2013), houve a retomada de investimento no (eterno) retorno dos ambulatórios de Saúde Mental e dos Hospitais Dia, do financiamento de leitos em Hospitais Psiquiátricos (agora rebatizados como “Hospitais Psiquiátricos Especializados”) e expansão do subsídio às Comunidades Terapêuticas (Brasil, 2017).
Nota-se nessa mudança, como aspecto transversal, a aposta em ações que tendem a se dar de modo individualizante, com maior risco de fragmentação do cuidado. O modelo de assistência proposto desconsidera a função central do território na construção dos modos de subjetivação dos usuários e as ofertas de cuidado condizentes com o contexto singular e coletivo da população, desinvestindo-se do que Venturini (2016) chamaria de vínculos-oportunidades nos projetos de vida. A isso se somam vários outros desafios inerentes à Reforma Psiquiátrica Brasileira, assim como aspectos mais amplos, relativos ao próprio SUS.
Em que pesem tantos impasses e ataques ao norte da política comunitária e poliárquica de Saúde Mental, trabalhadores e serviços continuam a pulsar a força da vida, da invenção, do compartilhamento de novos possíveis; do reconhecimento ao direito dos usuários, ao cuidado singular e à clínica sensível à diferença (Emerich e Onocko Campos, 2019a)
Temos defendido que a formação de trabalhadores, sob o prisma ético-clínico-político da Atenção Psicossocial, se coloca como fundante de transposição das práticas excludentes para a inclusão da subjetividade na centralidade do cuidado e dos modos de gestão de trabalho e da clínica (Onocko Campos, Emerich e Ricci, 2019, Emerich e Onocko Campos, 2019b). Sem ingenuidades e sem desconsiderar atravessamentos que fogem à governabilidade dos pontos de atenção e dos profissionais, esses atores, cotidianamente e de modo ascendente, criam, experimentam, constroem, resistem, dão vida e sentido à utopia civilizatória da Reforma Psiquiátrica e do próprio SUS.
A Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp coloca-se como lócus privilegiado nessa trama, ao sustentar o diálogo permanente entre teoria e prática, em campos concretos, com suporte institucional às experimentações.
Em nossa experiência na Residência da UNICAMP, a construção de Itinerários de Formação (Onocko Campos, Emerich e Ricci, 2019) tem se consolidado como uma estratégia de reflexão acerca das marcas pessoais que trouxeram os residentes à Saúde Mental, com vistas à construção de um estilo profissional. O reconhecimento do que os impulsiona ou paralisa no encontro com a loucura e o sofrimento psíquico, e a relação com as instituições permitem-lhes, assim, desenvolver modos originais e pessoais de lidar com toda essa complexidade.
Além dos construtos teóricos e técnicos que devem sustentar a formação para o campo da saúde coletiva e da saúde mental, a interface entre dimensões institucionais, coletivas e dos sujeitos (Emerich e Onocko Campos, 2019b) é contemplada no arcabouço pedagógico: o trabalho que se dá nas/com as instituições, com a experiência e singularidade do trabalhador no encontro com o outro, tendo no coletivo o suporte para reflexão, parcerias e ofertas plurais.
Se os tempos são sombrios, plurais são os cuidados que reafirmam a vida como potência, como projetualidade, tal qual apresentamos na sequência — uma série de artigos que relatam experiências concretas e cotidianas, produzidas em ato, em diferentes pontos de atenção da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), transversalizadas por diversas perspectivas clínicas e de diferentes núcleos de formação profissional.
Trata-se da aposta na criação, na insistência e na resistência, às quais a vitalidade desses novos atores vem dar a luz, somando-se à luta pelo cuidado em liberdade e na busca persistente pela garantia dos direitos. Saravá!