Gênero e religião: o exercício do poder feminino na tradição étnico-religiosa ioruba no Brasil
Abstract
O trabalho discute o cotidiano do exercício do poder feminino no
interior das relações de gênero entre afrodescendentes de classes populares no
Brasil, a partir das relações vivenciadas na religiosidade de matriz africana
iorubá, buscando os impactos dessa adesão religiosa na construção da
subjetividade das mulheres e nas suas relações sociais na sociedade. Em relação
ao exercício do poder feminino no interior das relações de gênero na sociedade
brasileira, diferentes contextos sócio-culturais fornecem elementos para a
formação de identidades culturais de diferentes grupos, constituindo
particularidades nacionais. Um desses elementos é a tradição étnica e religiosa
iorubá, própria da sociedade africana pré-capitalista, recriada no Brasil no
território da chamada comunidade de terreiro de candomblé, o egbe. O egbe
expressa uma ocupação sociopolítica, uma vez que é um espaço religioso, mas
também espaço de reprodução social, étnicocultural, política, afetiva, de
acolhimento e, às vezes também, de prestação de serviços de “orientação
social”. A partir de dados coletados em pesquisas realizadas no Rio de Janeiro
com adeptos dessa tradição religiosa constatou-se que o egbe se pretende
constituir como território de complexas e contraditórias relações de classe,
gênero e etnia, e também como espaço tendencialmente plural e inclusivo, de
respeito à diversidade, de resistência e de construção de uma sociabilidade
voltada para valores emancipatórios e sociocêntricos. Na particularidade desse
contexto, segmentos oriundos das classes populares expressavam forte
sentimento de pertencimento e buscavam experimentar a possibilidade de
ocupar posições de relativo prestígio social, metamorfoseando lugares de
desvantagem social vivenciados na sociedade, do ponto de vista de classe,
etnia, gênero, orientação sexual, condição física ou mental, em posições
elevadas ligadas à hierarquia religiosa. Observou-se que aí, especificamente as
mulheres, majoritariamente negras, ocupavam os mais altos cargos, já que se
trata de uma organização de matriz africana matrilinear. Encontraram-se,
também, alusões ao discurso mítico para explicar condutas vivenciadas no seu
cotidiano, que podem estar vinculadas a estratégias de busca de escape das
relações de dominação-exploração de classe, gênero e etnia, bem como
relacionadas à transgressão da organização social de gênero dominante, onde
predomina a heterossexualidade como norma, bem como a comportamentos
relacionados à combatividade, fundamentais para a construção de uma
sociabilidade libertária. Paralelamente, foram também encontrados discursos e
práticas reafirmadores de uma sociabilidade fundada na moral conservadora e
liberal-burguesa, bem como na ideologia neoliberal, consubstanciais ao modo
de produção capitalista. É nessa direção que se coloca a importância desse
tema: desvelar como o gênero, em especial o feminino, se expressa nesse
espaço e como as mulheres negras e pobres gestam táticas para o exercício do
poder, para o enfrentamento das opressões e das violências, bem como para a
luta pela concretização de direitos.